O Respiro do Futebol de Várzea
- Mateus Santos
- 3 de abr. de 2021
- 4 min de leitura

O ambiente é dominado pelo som de crianças e adolescentes falando, gritando e, vez ou outra, comemorando. Ainda mais alto do que isso se ressalta o barulho ocasionalmente oco de bolas sendo chutadas contra paredes e, mais esporadicamente, o som de bolas indo ao encontro das redes dos gols. Sobrepondo-se a todos estes sons vêm a voz do treinador: autoritária, paternal e rígida, dando comandos e ordens para os garotos. Durante praticamente uma hora, esta é a dinâmica do Rivellino Sports Center, uma escola de futebol sob tutela do ídolo do Corinthians e do Fluminense, que divide-se entre um local que preza o ensinamento de fundamentos básicos do esporte e também funcionando como uma base educacional para os meninos que se inscrevem.
A escola é um reflexo das origens futebolísticas de Roberto Rivellino, que iniciou sua trajetória no chamado ‘futebol de várzea‘, em campos de terra, com pedregulhos e lama — que ficaram muito conhecidos popularmente como o Celeiro dos Craques, revelando grandes jogadores brasileiros. Segundo o próprio ex-jogador, a ideia do centro esportivo não é tentar reavivar esse tipo de futebol, mas sim ensinar o básico para as crianças que passam por lá, estabelecer certa perspectiva de futuro na profissão e o mais importante: educá-los. “O futebol de várzea morreu. Não tem como trazer isso de volta (…), mas a gente tenta mostrar um caminho pra essa molecada e tenta ensinar o que se deve ou não fazer”, diz Rivellino quando perguntado acerca do futebol de várzea e o papel que a equipe do centro esportivo tem na vida dos garotos.
Apesar da preocupação social, que se assimila bastante com iniciativas criadas por outros ex-jogadores como Cafu, Raí e o próprio craque atual da seleção brasileira, Neymar, o Rivellino Sports Center também tem atletas que fazem parte de famílias de classes sociais mais elevadas — o que causa certo contraste com estes outros projetos que exclusivamente tem como objetivo o resgate de garotos que vêm de comunidades e lares precários. “A gente tem esses garotos que provém de famílias mais privilegiadas, mas ainda assim a gente tá ajudando na educação deles. Aliás, principalmente na deles. Muitas vezes alguns pais vêm até nós pedir pra gente conversar com o filho deles em relação a algo, porque temos essa proximidade”, comenta Mario Souza, coordenador do centro há 20 anos.
E como reiterado tanto pelo coordenador, quanto pelo eterno craque da seleção brasileira, o ambiente do Rivellino Sports Center é realmente diferenciado, sem aquela pressão de garotos se tornarem profissionais, com uma preocupação mais voltada para a educação social dos meninos que passam por lá. Isso é refletido durante os treinamentos e o cotidiano das equipes, sejam elas mais juvenis ou mais adultas. Os garotos mais novos estão com rostos sorridentes e alegres e ainda que a competição seja muito presente, parece que há um consenso mútuo implícito de que o foco é a diversão. Esporadicamente eles são interrompidos por alguma bronca amigável do professor ou algum comando para que eles mudem o exercício, mas o sorriso permanece sendo uma constante.
Roberto Rivellino, durante todo este tempo de entrevista e observação, permanece em sua sala pessoal, recheada de troféus do próprio e de times que integram a escolinha, mas tem como principal marca ventiladores tão barulhentos quanto as hélices de um helicóptero de mais de 20 anos e uma recepcionista que insiste em não atender ao telefone, ainda que ele toque pelo menos 10 vezes. O local parece que já viu dias melhores, com um aquário sem nenhum peixe rondando o interior — talvez já tenha morrido e as pessoas nem repararam -, árvores bem cuidadas à primeira vista, mas que em um segundo olhar se mostram artificiais e um sofá que parece o paraíso, porém quando serve de assento remete a uma tábua de passar roupas.
O ex-jogador permanece exatamente o mesmo da década de 70, com poucas diferenças: o bigode parece ter sido pintado à mão caprichosamente de branco e o cabelo parece ter rareado exponencialmente, mas a feição continua a mesma e o modo de falar, autoritário, brusco e gentil ao mesmo tempo, permanece. E é justamente Roberto Rivellino o grande diferencial do centro esportivo, principalmente pela relação que tem com os jogadores e os pais deles. “Ele [Rivellino] tá sempre por perto, né, ajudando os garotos. Vez ou outra ele aparece em um dos campos e conversa com o pessoal, dá algumas dicas”, comenta Ricardo Cunha, pai de um dos meninos que joga na categoria sub-15.
Segundo Rivellino, se dependesse dele, ele daria todas as aulas: “quando a gente começou a projeto, eu é quem cuidava das principais aulas e dos ensinos. Hoje em dia fica um pouco mais difícil porque eles não aguentam correr comigo, mas vez ou outra eu vou lá pra bater uma bolinha”. Alguns casos mais emblemáticos se destacam quando o ex-jogador fala sobre alunos que passaram por lá e tiveram suas vidas transformadas — não no quesito profissional, mas no social. O centro esportivo criou um programa chamado Os Excepcionais, em que aceitava garotos de comunidade para um jogo de futebol entre todo mundo às sextas-feiras, algo que perdurou por cerca de 10 anos. De acordo com Rivellino, os meninos enfrentavam problemas com drogas e tráfico e conseguiram se livrar disso aos poucos, com o Rivellino Sports Center sendo o refúgio deles.
Assim como o próprio craque da seleção brasileira diz, o futebol de várzea está morto. O famoso Celeiro de Craques foi findado ainda na época de Rivellino. Mas o futebol segue respirando e o escapismo que proporciona — assim como funcionou durante a Copa do Mundo de 1970, aliviando o peso das pessoas durante a ditadura militar — permanece bastante vivo. O refúgio que muitas pessoas buscam às vezes pode ser encontrado em coisas simples como as que Roberto Rivellino continua apostando. Talvez o futebol não cure todos os problemas da sociedade. Talvez não seja a grande salvação da nação. Mas talvez seja o escape e o refúgio de uma criança que enfrenta problemas dentro de casa. Talvez o principal legado de Rivellino não seja o de um homem que conquistou diversos títulos pelo Corinthians e pelo Brasil, mas sim de ajudar crianças a encontrar caminhos melhores e uma luz no fim do túnel. Este sim é o maior golaço do Bigode.
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