Silêncio: Filme Debate a Ausência Divina e a Eterna Surdez Humana
- Mateus Santos
- 5 de abr. de 2021
- 9 min de leitura

"O peso do seu silêncio é terrível. Eu oro, mas estou perdido. Ou eu só estou orando para o nada? Nada. Porque Você não está lá"
Esta é a frase que não só resume toda a trajetória dos personagens de Silêncio, mas que provavelmente sintetiza ao menos um momento da caminhada de fé de todas as pessoas. Porque a essência da fé é justamente esta: crer quando não existem evidências concretas. Crer mesmo durante os silêncios e a invisibilidade dos fenômenos.
Assistir a Silêncio foi uma experiência única para mim. Fazia muito tempo que eu não me entregava por completo a uma sessão cinematográfica, especialmente pelo fato de que, durante a pandemia, eu apenas assisti filmes repetidos ou sem tanto peso, porque o mundo já parece sério demais com a devastação do Coronavírus. Então foi a primeira vez, em um longo tempo, que me entreguei por completo a uma história de cinema. E, meu Deus, valeu completamente a pena.

Solidão da Fé
A história de Silêncio se passa durante o século 17 e acompanha dois padres portugueses, que são enviados ao Japão para descobrir o que aconteceu com Padre Ferreira, o homem que os introduziu na fé. Boatos circulam de que ele apostatou (um termo bastante explorado no filme), o que significa que ele negou a fé cristã. O contexto do filme é facilmente compreendido logo nos minutos iniciais: o Japão, durante esta época, é um país que prega o Budismo e proíbe o Cristianismo. Os homens de fé que são enviados para lá, junto com camponeses locais que professam da fé cristão, são chamados para apostatar publicamente ou são executados.
O primeiro fator que é reconhecível no filme, seja no personagem de Liam Neeson (intérprete do Padre Ferreira) ou nos padres Rodrigues e Garupe (respectivamente vividos por Andrew Garfield e Adam Driver), é o da solidão da fé.
Toda jornada em busca da divindade passa pela solidão e o filme exprime exatamente isto. Os momentos introspectivos dos personagens, em que eles clamam por sentido e pedem por coragem, são as expressões mais fiéis de uma caminhada de fé. A retratação principal disso mora no próprio Jesus Cristo, que sofreu o mesmo em vários momentos, mas os dois principais são: nos 40 dias do deserto e no Getsêmani, na noite em que foi traído. A mensagem transmitida é bastante clara: para alcançar certa paz espiritual, é necessário um caminho de solidão e solitude.
Quando Rodrigues vivencia isso, ele experimenta várias outras sensações parecidas com a de Jesus, mas, no geral, essas experiências têm duas consequências distintas. Ou torna a pessoa mais humilde e a aproxima da sua figura divina, ou a torna mais arrogante e ela recai em preconceitos.

Arrogância
Padre Rodrigues, personagem de Andrew Garfield, é mais um dos retratos certeiros de Silêncio. Nas quase três horas de filme, ele passa por um processo de total desconstrução mental e uma mudança de perspectiva brusca - não da sua fé em si, mas da forma como ele enxerga o mundo a partir dela.
De início, ele enxerga a si mesmo como o único refúgio para a população do Japão, considerando que não há mais padres no país, e a única figura de liderança religiosa é um camponês que nunca foi instruído pela Igreja Católica. Essa percepção de salvador, messias e escolhido é uma questão que se desenvolve durante todo o longa. Primeiro, sutilmente, com Padre Rodrigues desejando morrer por aquelas pessoas, simpatizando com o sofrimento delas e aceitando de bom grado se tornar um mártir por todas elas. Isso não o impede, é claro, de enxergá-las como seres inferiores. E é aí que começa o erro dele.
Logo na primeira hora de filme, o padre caracteriza os camponeses da vila como pobres criaturas, miseráveis e que vivem como lixo. Mas ele rapidamente complementa, na narração de fundo, que é fácil morrer pelos bons. Difícil mesmo é fazer como Jesus e morrer pelas pessoas ruins. Suas atitudes para com o povo são boas, mas os sinais da crescente arrogância do personagem são claros desde quando ele faz a primeira missa com o povoado. Afinal, quem é capaz de definir quem é bom ou ruim?
Esta mesma arrogância, em referência ao Padre Rodrigues, é descrita por um intérprete japonês, que faz parte do exército de homens que seguem Buda e o Inquisidor.
A discussão que o filme acaba propondo, por meio deste diálogo, é acerca das semelhanças do Cristianismo e do Budismo, e sobre como a Europa Colonial tentava se sobressair, chamando seus caminhos de A Verdade.
Como cristão, eu acho esta uma das questões mais interessantes e mais bem elaboradas no filme. A arrogância de Rodrigues em não enxergar o seu oposto, em apenas apontar para as diferenças, em vez de apontar para as semelhanças, é uma constante humana, de achar que O Outro sempre está errado e o Meu Caminho sempre é o certo.
"Ninguém deve interferir com os caminhos do espírito de outro homem. Ajudar os outros é o caminho de Buda e o seu caminho também. As duas religiões são iguais nisso. Não é necessário um lado ganhar e outro perder quando há tanto a ser compartilhado".
As palavras do Intérprete são precisas, atemporais e muito significativas. Claro que seu discurso é atrapalhado pelo contexto do filme, em que existe uma intolerância gigantesca contra os Cristãos, mas a reflexão, por si só, do respeito mútuo das diferenças, é uma das coisas mais belas de Silêncio - e uma das maiores necessidades da sociedade contemporânea.

Um Mundo de Doutrinas
A jornada do Padre Rodrigues ao Japão pode ser interpretada como parte de uma missão jesuíta para resgatar as almas do maior número de camponeses possíveis e para descobrir o que aconteceu ao Padre Ferreira. Mas eu prefiro enxergar de outro jeito. Acho que, muito mais do que uma aventura para ajudar os outros, Rodrigues precisa desta jornada para salvar a si mesmo. Para se desvencilhar dos dogmas, do mundo ocidental que ele conhecia como absoluta verdade e da falta de percepção para o que é diferente.
Existe uma quebra que Rodrigues vive e que todas as pessoas que seguem uma religião enfrentam em certo momento: a percepção de que a Instituição e a Fé são duas coisas distintas que não precisam, necessariamente, caminhar juntas. No filme, isso se dá de forma mais clara durante a conversa de Rodrigues e Padre Ferreira, quando o protagonista finalmente percebe que as Doutrinas que ele segue não são o fundamento da sua crença.
Não é à toa que, ao longo dos séculos, os utensílios, as imagens e os objetos sagrados perderam significativamente a importância. O sagrado não mora em um objeto ou em uma imagem, mas em tudo. Nas pessoas e na natureza. O próprio Rodrigues cita isso mais cedo, ainda que se apegue a essa ideia de outros jeitos: "Eu me preocupo, eles valorizam mais estes pobres sinais de fé do que a fé em si". E esta é a chave para o início da morte do preconceito que Rodrigues tem para com aquilo que é diferente de si.
"O Japão mostra a natureza humana. E talvez achar Deus seja isso". Padre Ferreira diz isso para Rodrigues quando explica que as nomenclaturas não importam tanto. Durante esta mesma conversa, ele fala sobre como os japoneses têm dificuldade de acreditar em um Ser Etéreo, que vá além dos limites da natureza, porque, para eles, a divindade está ao seu redor.
Muito mais do que uma discussão de qual crença é a correta, acredito que as falas de Padre Ferreira e do Intérprete proponham uma reflexão muito mais interessante acerca de como todas as religiões talvez se complementem, ainda que funcionem de forma diferente. Talvez todas as pessoas estejam em busca de sentido, da verdade e de Deus, mesmo que façam isso por caminhos que muitas vezes não se cruzam. Como o Intérprete diz, há tanto a ser compartilhado.

Silêncio
Assim como o título prevê, o silêncio é o que move este filme.
Martin Scorsese, diretor do longa, demorou mais de 25 anos para produzi-lo, que sempre foi o projeto dos sonhos dele. Isto porque ele sentia que não estava pronto. Ele diz em entrevistas que precisava viver outras coisas antes até chegar no momento correto da vida para produzi-lo e, sempre que ele tentava iniciar a produção, algo entrava no caminho e atrapalhava. Talvez eu esteja indo muito além aqui, mas acho que ironicamente isso se parece em muito com a própria mensagem do filme. A ideia de que nós, humanos, estamos sempre tentando lutar contra a maré, forçando o universo a nos conceder o que realmente queremos e, quando isso não dá certo, buscamos um sentido para isso, uma resposta. Um porquê.
Com o sonho de ser um padre quando era mais novo, Martin Scorsese transmite muito bem tudo isso durante as quase três horas de longa. Especialmente porque ele não foca em dar respostas, bem parecido com Deus. Muitas vezes durante o filme, as respostas não moram em diálogos, mas, sim, naquilo que existe entre eles: no silêncio. Talvez por sermos extremamente comunicativos e inquietos como sociedade, nunca tenhamos nos acostumado com o silêncio. Mas ele sempre foi uma forma de comunicação. E esta, para mim, é a principal mensagem do filme.
Padre Rodrigues tenta, durante toda sua jornada, mudar o povo japonês até que ele entende que o Cristianismo não pode criar raízes ali, porque nada frutifica naquele pântano. E isto é um reflexo doloroso de ver. Porque, como humanos, somos exatamente assim. Nós tentamos mudar o mundo ao nosso redor e a natureza das pessoas, e tentamos ter controle sobre tudo, mas a vida não funciona assim. O próprio Padre Ferreira diz isso: "Montanhas e rios podem ser movidos, mas a natureza do homem não". Silêncio é uma lição sobre limites. E é uma lição sobre fracasso. Porque o ser humano está fadado a falhar, tentar de novo, falhar mais um pouco e, por fim, viver paradoxos. A própria essência do Cristianismo é esta: imitar o homem perfeito, ainda que nunca sejamos perfeitos, ou seja, é impossível. É um paradoxo. A beleza da jornada não reside na esperança de ser perfeito, porque aí estaríamos caindo no mesmo terreno de Rodrigues, de sermos arrogantes. A beleza da jornada está na tentativa de ser melhor do que ontem e, de certa forma, isto basta.
A jornada de fé também recai muito nisso. Rodrigues só entende de fato que quem está sendo transformado nessa missão é ele, e não os camponeses, quando percebe que está buscando uma forma de se glorificar. O próprio inquisidor menciona isso: "O preço da sua glória é o sofrimento deles". E, de muitas formas, as doutrinas religiosas representam justamente isso ou, indo mais além, até mesmo a aniquilação da fé das pessoas. E isso funciona para todos os lados. Em Silêncio, são os Cristãos que estão sendo perseguidos pelos Budistas. Mas e durante a Inquisição? Os perseguidores eram os Cristãos, sob a mesma bandeira. A reflexão do filme é justamente sobre isso, sobre não existirem lados. Ninguém precisa ganhar ou perder. A fé é o bastante e, quando damos muita importância para as doutrinas, nos perdemos no legalismo e não focamos no mais importante: amor.
"Vá em frente, ore. Mas ore com seus olhos abertos". Esta é a frase mais forte para mim de todo o filme, porque ela representa muito do que vivemos hoje. A oração é a chave da conexão com Deus, é o nosso link direto para com a divindade, mas até que ponto vale a pena o distanciamento da realidade para pedidos de súplica? Como um amigo meu costuma dizer: Deus vai fazer sua parte, mas você precisa fazer a sua antes e, depois, confiar. De que adianta uma oração bem direcionada se estamos de olhos fechados para nossa realidade, sem nos colocarmos no lugar do outro?

Voz
Por fim, o que mais me chamou atenção foi a voz de Deus no filme. A forma como Scorsese escolheu retratar isso. Acho que ele fez um trabalho fenomenal neste sentido. A voz de Deus, em Silêncio, é o conforto e a resposta que todos nós esperamos um dia ouvir. É o ombro amigo dizendo que você nunca esteve sozinho. É o Pai te abraçando e dizendo que ele esteve em silêncio, mas que ele passou por tudo aquilo com você. É generosidade pura. É amor puro e universal. É a síntese do que a fé significa para muitas pessoas (inclusive para mim): a noção de que Deus sempre está presente, mesmo durante seu silêncio.
Em Salmos 119, é dito que "Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos", ou seja, mesmo que não estejamos escutando Sua voz ou sentindo por perto Sua presença, a natureza ao nosso redor é resposta o suficiente algumas vezes. Este versículo é, inclusive, uma mensagem que até mesmo reitera o que o Intérprete e Padre Ferreira dizem: os Budistas não conseguem imaginar um ser etéreo como Deus. Mas qual é o problema? Se eles enxergam divindade no céu, no nascer do sol e no firmamento, isto já não é o suficiente?
A lição que o filme deixa, por meio de Rodrigues, Ferreira e pelo próprio Deus, é que a nossa capacidade de amar o próximo é o legado mais importante que deixamos. E é o legado mais importante que Jesus deixou. O resto é resto. Foque no amor, porque o resto, assim como Padre Rodrigues aprende, faz parte da doutrina formulada pela Instituição.
No fim das contas, Silêncio é uma lição de humildade. Humildade em perceber que talvez eu não seja nenhum salvador. Que talvez eu não seja o cristo no Getsêmani. É uma lição para que as pessoas se distanciem do perigo de se imaginarem como os cristos desta Terra. Como os julgadores e detentores de toda sabedoria. É uma lição de que eu não sou nenhum salvador, e um lembrete de que, na verdade, sou um dos que precisa ser salvo -e, muitas vezes, salvo de mim mesmo.
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